Controlo de treino – Indicadores, heurísticas e atratores comportamentais

Já por diversas vezes abordei o tema do planeamento e controlo de treino [LINK], por convicção de que uma adequada sistematização das análises que antecedem e procedem esse momento trará vantagens competitivas a médio-longo prazo. Especificamente sobre as avaliações pré-treino, foram aqui discutidas métricas como o espaço disponível por jogador, o rácio comprimento-largura, a dificuldade ou a complexidade que, por abordarem a ocupação do espaço de jogo e os contextos de cooperação e oposição, permitem ajustar os estímulos das tarefas às competências dos indivíduos e grupos. Apesar destes indicadores serem comummente empregues e aceites, todos, quando vistos de forma independente, apresentam limitações, podendo alguns ser expandidos. Vejam-se duas novas variáveis, de cálculo simples, que acrescentam informação às equipas técnicas. Recorrendo a dois exercícios em tudo semelhantes, exceto no número de defesas existentes (Tabela 1).

Tabela 1. Dados dos exercícios 1 e 2.

Calculando o previamente discutido espaço disponível por jogador – divisão aritmética da área de jogo pelo número de atacantes ou defesas aí presentes – é possível entender que, em ambos os exercícios, cada atacante dispõe de 125m2 e que, no exercício 1, cada defesa terá de cobrir 250m2, ao passo que no exercício 2 apenas 188m2. Apesar destes dados serem relevantes, apresentam-nos duas “imagens” separadas. Uma delas para o contexto de cooperação (espaço para cada atacante) e outra para o de oposição (espaço para cada defesa). De forma a analisar estes elementos em conjunto, poderão introduzir-se duas novas métricas, que informam acerca do número de defesas no espaço de cada atacante, bem como o oposto disto (Cálculo 1 e 2, respetivamente).

Cálculo 1. Número de defesas no espaço de cada atacante.

Cálculo 2. Número de atacantes no espaço de cada defesa.

Com recurso a estas variáveis podemos entender que, no primeiro dos exercícios, cada atacante terá “meio defesa” dentro da sua área de responsabilidade, tendo cada defesa de anular dois oponentes. Já na segunda tarefa, cada atacante terá 0,67 adversários no seu espaço, tendo cada defesa apenas um 1,50 atacantes (ver Tabela 2).

Tabela 2. Dados expandidos dos exercícios 1 e 2.

Apesar desta informação ser computada com base nos dados com que também se calculou o espaço disponível por jogador (atacante ou defesa), a nova fórmula integra as informações de ambas as equipas, criando-se assim uma imagem mais clara dos contextos de cooperação e oposição. Naturalmente, são ainda desconsiderados aspetos como a influência da lei do fora de jogo no espaço passível de ser usado, bem como as diferenças no espaço para cada indivíduo, consoante nos aproximamos ou afastamos do centro de jogo. Daí ser importante combinar métricas, dentro das capacidades de recolha existentes, que permitam superar as limitações de cada variável.

Outro indicador já antes apresentado é o da dificuldade (Cálculo 3) [LINK]. Este avalia o “equilíbrio de forças” numa tarefa, analisando-o da perspetiva da equipa atacante.

Cálculo 3. Dificuldade de uma tarefa.

Imaginem-se dois exercícios semelhantes… No primeiro deles, estão presentes 4 defesas (um guarda-redes e três jogadores de campo), existindo possibilidade de remate à baliza. No segundo, todos os defesas são jogadores de campo, sendo o remate substituído por passe a uma mini-baliza. Os dados gerais das tarefas encontram-se na tabela seguinte.

Tabela 3. Dados dos exercícios 1 e 2 e cálculo da dificuldade.

Recorrendo à fórmula original de Travassos, ambos os contextos apresentam uma dificuldade ofensiva de 57%. No entanto, poderemos argumentar que, devido ao facto do guarda-redes ter uma menor exploração espacial que os restantes 3 defesas (jogadores de campo), a dificuldade do primeiro exercício será inferior à do segundo, uma vez que os atacantes terão de ultrapassar menos adversários durante a progressão para o alvo (3 em vez de 4). De forma a integrar esta nuance, comecei a calcular uma nova variável intitulada de dificuldade ponderada pelo espaço.

Cálculo 4. Dificuldade ponderada pelo espaço.

Tabela 4. Dados dos exercícios 1 e 2 e cálculo da dificuldade ponderada pelo espaço.

Utilizando este novo cálculo, ambas as tarefas já aparentam diferir em dificuldade (29% e 38%, para o exercício 1 e 2, respetivamente), algo não refletido na fórmula original. Esta destrinça entre exercícios poderá, mais uma vez, acrescentar informação e facilitar a tomada de decisão das equipas técnicas. Ainda assim, é de ressalvar que ambas as variáveis (dificuldade e dificuldade ponderada) se mantêm úteis e não se substituem.


O controlo dos indicadores prévios é especialmente vantajoso quando aplicado a exercícios de carácter “específico” – por exemplo, onde se mantém o ciclo de perceção-ação intacto e nos quais se admite variabilidade nos processos adotados para a consecução dos objetivos da tarefa. No entanto, também se poderão criar sistemas de avaliação para exercícios de índole técnica – focados na melhoria das ações motoras com bola, mesmo que usando abordagens menos integradas. A utilidade destas tarefas foi já discutida anteriormente [LINK]… Neste segundo e último grande bloco do artigo, apresentar-se-ão hipóteses para o controlo desses exercícios, avançando depois com formas de monitorizar tarefas “específicas” e técnicas, com um menor investimento de tempo.

No que respeita aos exercícios técnicos, é possível indicar alguns elementos que se sucedem temporalmente (alguns prévios, outros momentâneos e outros posteriores à ação propriamente dita) e criar, dentro destes, escalas de dificuldade para a ação motora. Procurando esclarecer, vejam-se algumas ideias… Na maioria das ações, a bola apresenta uma trajetória prévia ao contacto do jogador com a mesma. Dentro deste elemento (a trajetória prévia), poderão criar-se categorias de dificuldade para a execução do gesto técnico. Por exemplo, um remate com a bola a chegar em trajetória aérea será de mais difícil execução quando comparado à mesma ação frente a uma trajetória rasteira prévia. Outro elemento a considerar é o do enquadramento da bola relativamente ao movimento do jogador. Um remate com a bola a chegar no sentido oposto a esse movimento será de mais fácil execução comparativamente a um remate no qual a bola que chega “angulada” ou no sentido de deslocamento do atleta. Poderão ainda apontar-se elementos como (1) o enquadramento do jogador relativamente ao destino que pretende dar à bola – portanto, se é ou não exigida uma rotação do corpo para a execução técnica – (2) a trajetória da bola durante ou após a execução do gesto – um remate com trajetória rasteira poderá ser mais simples do que o mesmo gesto direcionado a um ângulo superior – ou ainda (3) a colocação dos apoios para a execução técnica – um remate sem apoios no chão terá dificuldade superior a outro com um pé apoiado.

Logicamente, a lista anterior não é exaustiva, alguns dos elementos indicados poderão não se aplicar a todas as ações técnicas, desconhecendo-se também a influência de cada um dos fatores na criação da “dificuldade global” da tarefa. No entanto, este tipo de registos permite que os exercícios não sejam escolhidos de maneira avulsa e por mera replicação de tarefas observadas noutros locais, mas sim por via da seleção prévia de conteúdos, servindo o “desenho” do exercício como forma de garantir a presença dos tópicos desejados. Se aos elementos propostos se acrescentar ainda algum controlo sobre a frequência da execução de cada gesto e sobre o fenómeno de interferência contextual [LINK], estará criada uma base adequada para efeitos de planificação.

Monitorizações como as apresentadas implicam algum dispêndio de tempo, porventura não disponível. De forma a superar essa limitação e, ainda assim, manter algum controlo sobre a dificuldade dos conteúdos propostos, poderão criar-se sistematizações como a que abaixo se apresenta (Tabela 5), recorrendo a algumas heurísticas…

Tabela 5. Utilização de heurísticas para controlo de dificuldade ofensiva.

Observando a tabela prévia, que integra e avalia fatores relativos à lógica interna do jogo, torna-se possível prever e comparar a dificuldade entre tarefas. A título de exemplo, um exercício no qual os jogadores experienciam uma superioridade numérica, dispondo de elevado espaço por jogador e uma baixa distância inicial até ao alvo será, em teoria, ofensivamente mais simples do que outro exercício com características opostas. Este tipo de avaliações sucintas, quando acopladas a algumas regras que direcionem a exploração percetual e motora dos jogadores num sentido pretendido, poderão ser suficientes para um planeamento satisfatório. Acredito que esta opção é especialmente relevante para contextos com elevada imprevisibilidade no número de atletas presentes, como no futebol de formação.

Estas sistematizações poderão também ser usadas para antecipar a verticalidade da progressão, bem como a utilização de determinados métodos de ataque (contra-ataque, ataque rápido e ataque posicional), recorrendo à ideia dos atratores comportamentais – o facto de alguns contextos “convidarem” os atletas a explorarem certas ações e/ou ritmos.

Tabela 6. Utilização de heurísticas para controlo da verticalidade da progressão.

Previsivelmente, um baixo número de adversários entre a bola e o alvo, um elevado espaço entre a última linha defensiva e o alvo, ou uma baixa densidade de jogadores no centro de jogo, “convidarão” os jogadores a um ritmo de progressão espacial elevado. Já as condições opostas, que representam maior “equilíbrio” no jogo [LINK], induzirão menos verticalidade, bem como a necessidade de um jogo mais “combinativo”.

No que toca ao controlo de exercícios técnicos com um investimento de tempo inferior, poderá ser adotada uma solução como a criação de uma escala relativa à frequência de cada gesto (por exemplo: 0 – inexistente; 1 – pouco frequente; 2 – algo frequente; 3 – muito frequente). O valor atribuído à frequência de cada ação técnica será multiplicado pelo tempo total da tarefa (em exercícios com elevada continuidade temporal), ou pelo tempo expectável de ação motora de cada indivíduo (em tarefas descontínuas; com elevada espera em filas), gerando-se assim um valor que permite a monitorização ao longo dos microciclos.


Apresentaram-se ao longo deste artigo um conjunto de hipóteses para o controlo das unidades de treino, aplicáveis tanto a exercícios “específicos” como a outros de índole técnica. Introduziram-se também opções que implicam diferentes dispêndios de tempo para o registo da informação. Todas as soluções apresentadas situam-se sob o escopo do controlo da sobrecarga, sendo ainda necessário acrescentar considerações relativas aos princípios da especificidade e individualização [LINK], por forma a garantir um planeamento adequado. Importa também sublinhar que o objetivo do controlo de treino não é o da recolha do máximo de indicadores possíveis, mas sim o de reunir um conjunto de métricas, dentro das limitações tecnológicas e de tempo existentes, que se complementam e facilitam a tomada de decisão das equipas técnicas.


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