O processo de treino, os princípios e as habilidades

Em artigos anteriores aludi à necessidade de considerar o processo de treino como uma aplicação contínua de estímulos, com o intuito de preparar os grupos e/ou indivíduos para os contextos de performance. Dessa forma, procurei distanciar-me de uma perspetiva tentadora que, por via de um apelo à natureza, vê na aproximação do treino ao jogo o propósito de todo esse processo. Fiz também referência à possível incompatibilização entre os princípios da especificidade/representatividade (aqui utilizados como sinónimos) e os da sobrecarga e individualização. Sendo que todos estes argumentos foram apresentados de maneira sucinta e incompleta, tentarei complementá-los, acrescentando algumas das considerações metodológicas e operacionais sob as quais me tenho debatido.


O jogo formal, contexto no qual se pretendem ver refletidas as melhorias decorrentes do treino, apresenta um conjunto de características próprias, comummente referidas e aceites. Como exemplo, poderemos indicar a permanente interação entre os constituintes do sistema, tendo esta um impacto direto nas ações que aí emergem. Recorrendo a uma analogia que ouvi recentemente, sobre uma pedra que desce uma colina… O movimento aí observável não é mera consequência dos atributos dessa pedra, mas sim da interação que se gera e auto-organiza entre esta e o declive em causa. Assim e por inferência, a unidade mínima de análise aplicável a um fenómeno (uma ação ou movimento de um atleta, equipa ou objeto), sem que essa observação saia “empobrecida”, será a que une esse fenómeno ao ambiente no qual o mesmo decorre. Em adição, e ainda sobre as características da modalidade, é possível referir-se o encadeamento entre perceção e ação. Com a perceção das informações localmente disponíveis a influenciar as ações executadas, e a execução dessas ações a influenciar o contexto e as informações aí presentes, de maneira sequencial.

Como reflexo destas considerações, a utilização de exercícios que contenham as fontes de informações do jogo formal (velocidades, distâncias, ângulos, etc.) e que ao mesmo tempo aproximem a expressão motora (com e sem bola) da que é comum na modalidade, têm sido propostas como orientações metodológicas a adotar. E a literatura comprova a importância desse treino com elevada especificidade, para o desenvolvimento de competências (skills) que permitam alcançar os objetivos da tarefa em causa… Veja-se abaixo uma evidência anedótica, que demonstra o impacto que aparentes pequenas alterações (mudança de overhand para underhand throw) têm no desempenho de um atleta de alto nível.

Ainda assim, acredito que devem ser feitas algumas ressalvas, poucas vezes abordadas. Primeiramente, deve ser notado que apesar da procura de um elevado grau de especificidade ser (muito) relevante para o aumento do potencial para um bom desempenho, não se deve constituir como condição única, nem indispensável (poderemos admitir níveis de especificidade mais baixos). Utilizando uma redução ao absurdo… Caso se transforme o processo de treino numa simples aproximação ao jogo formal, ou a variações deste, por consequência terá de se negar o contributo de diferentes áreas/disciplinas das Ciências do Desporto (biomecânica, fisiologia, etc.), que se centram apenas na performance do indivíduo e não nas interações entre estes. Simultaneamente, será também recusada a utilidade de ferramentas como a análise de vídeo, o feedback ou a imagética que, apesar de se focarem na interação dos elementos, não os imergem nos contextos competitivos. Igualmente, será invalidada a hipótese dos desportos doadores que, pese embora se aproximem em diferentes graus das fontes de informação e expressões motoras do Futebol (os jogos desportivos coletivos de invasão apresentam mais semelhanças entre si, do que diferenças), não se constituem como o mesmo fenómeno.

É ainda possível referir que apesar do desempenho depender da permanente afinação com os contextos em causa, as habilidades (skills) que permitem a adequação nas respostas sustentam-se em sistemas de variadas ordens (genética, neurológica, fisiológica, etc.). Estes poderão ser influenciados de maneira descontextualizada, gerando-se vantagens competitivas com diferentes magnitudes e relevâncias, que acabarão por se expressar de forma auto-organizada nos ambientes de performance. Veja-se a possível correlação entre horas de leitura de um indivíduo e a sua capacidade de argumentação… Apesar de se tratarem de atividades distintas, pelo menos quando vistas de um ponto de vista “materialista”, poderão apresentar simultaneidades pela sua sustentação num mesmo sistema de origem (áreas de Broca e Wernicke). Paralelamente e num contexto mais específico, imagine-se um atleta com algum tipo de imparidade visual. Sendo que grande parte da informação utilizada na prática é recolhida através desse sistema, a resolução dessa imparidade, de um qualquer modo descontextualizado, impactará no desempenho desse indivíduo. É ainda sobejamente reconhecido que quaisquer atividades em indivíduos iniciantes/destreinados influenciam o seu desempenho noutros contextos, aparentemente pouco relacionados (o grau de especialização poderá ter influência na especificidade necessária para que as melhorias surjam, mas esse tópico afasta-se do pretendido para este artigo)… Com estes exemplos simplistas, não procuro afirmar que o afastamento dos contextos específicos é a solução mais eficiente ou eficaz, mas sim que o princípio da especificidade/representatividade não é resposta única para os problemas do treino desportivo, e que o “rolar da pedra” não poderá ser melhorado apenas através de deslizes sucessivos…


Outro fator relevante nesta discussão é o desfasamento temporal entre o contexto de performance (jogo formal; circunscrito no tempo) e a sequência de estímulos aplicados na preparação para este (processo de treino; continuidade temporal). Sendo que a melhoria das habilidades úteis para o sucesso competitivo se verifica gradualmente e a longo prazo, a simples presença dos elementos do ambiente de performance torna-se insuficiente [LINK], uma vez que estes não “respondem” ao carácter longitudinal do processo, nem à necessidade de adaptar o mesmo às competências dos indivíduos ou grupos. Como tal, será preciso contemplar outros fatores, encapsulados nos princípios da sobrecarga e individualização, que poderão não se harmonizar por completo com o da especificidade.

Conforme mencionei previamente [LINK], julgo que as habilidades referidas brotam das regras constitutivas da modalidade (leis do jogo) e da consequente necessidade de dominar os construtos do espaço e do tempo, através da gestão de elementos como as relação numéricas, ocupações espaciais ou ritmos. Veja-se então de que forma o princípio da sobrecarga poderá incompatibilizar-se com o da especificidade, recorrendo a dois exercícios defensivos semelhantes. O primeiro deles (Figura 1), tem como simples propósito a recuperação da posse de bola, evitando que o adversário marque na baliza.

Figura 1. Exercício defensivo com sentido de progressão preferencial.

O segundo apresenta um objetivo idêntico (recuperar a posse), não existindo no entanto nenhuma baliza, e procurando a equipa defensiva evitar passes por dentro de uma determinada zona (no exemplo abaixo, pelo quadrado mais central).

Figura 2. Exercício defensivo sem sentido de progressão preferencial.

Apesar de se poder considerar o primeiro deles como mais específico, pelo facto de ser dotado de um sentido de progressão preferencial (dependente do local da baliza), o segundo exercício poderá ser proposto como uma progressão do anterior, caso o objetivo de treino seja intervir sobre a capacidade de alterar e cumprir com as funções defensivas do centro de jogo (contenções, coberturas, equilíbrios, etc.). No segundo caso, a ausência do sentido de progressão preferencial levará a maior dificuldade nos reajustamentos defensivos necessários para o cumprimento do objetivo da tarefa (recuperar a posse), podendo assim potenciar-se a habilidade em causa (isto partindo do princípio que o nível de exigência é adequado aos atletas). Considerando que o propósito do treino é o da preparação para o jogo, e não o da replicação do mesmo, esta opção de planeamento menos representativa poderá ser vantajosa…

De maneira bastante sucinta, e procurando não alongar um artigo já extenso, importa ainda referir a constante incerteza na “resposta” dos elementos aos estímulos aplicados [LINK], bem como a dificuldade em individualizá-los em desportos coletivos, por exemplo, de forma a minorar diferenças entre as solicitações do treino e a “pegada” do jogo formal [LINK]. Ambos os fatores poderão também levar ao abandono de elementos da especificidade (ver quadro abaixo), para melhor adequação das tarefas às necessidades dos executores e posterior desenvolvimento das habilidades das quais o sucesso competitivo depende.

Quadro 1. Elementos de especificidade nos exercícios de treino.


Sumariando os argumentos anteriores e a minha perspetiva atual relativa ao processo de treino… Continuo a crer na utilidade de um conjunto de métodos complementares que, apesar de não serem o mais relevante, permitem suprir os constrangimentos temporais das tarefas mais representativas, predispor os indivíduos a determinadas explorações percetuais e motoras, possibilitando também a melhoria de competências e sistemas que, apesar de serem dificilmente treinados em contextos específicos (por falta de sobrecarga, repetição, ou outros), constituem-se como fatores relevantes para o sucesso. Já no que concerne ao trabalho “de campo”, e sendo consistente com a perspetiva de que a descrição do ambiente de performance não fornece todas as informações necessárias para a delineação de um processo a longo prazo, julgo que o caminho a adotar será o da manutenção de elevados níveis de especificidade, garantindo o máximo de elementos desta que, ainda assim, permitam sobrecarregar, individualizar, e melhorar a gestão dos construtos do espaço e do tempo [LINK].


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