Treino Desportivo e Especificidade – O argumento simplista

O treino desportivo tem como base um conjunto de princípios – sobrecarga,  reversibilidade, especificidade, etc. – que funcionam como linhas orientadoras para as planificações necessárias.

De acordo com o princípio da especificidade as adaptações garantidas pelo treino serão idênticas às demandas aí impostas. Como tal, de forma a melhorar um determinado sistema energético ou a execução de um skill será necessário solicitá-lo ou executá-lo de forma repetida. Um atleta de natação deverá nadar frequentemente, da mesma forma que um maratonista melhorará o seu desempenho sobretudo ao correr. Dentro de uma mesma modalidade o princípio da especificidade também se mantém válido sendo que, por esse motivo, a planificação de treino de um maratonista será diferente da de um corredor de 400m. De forma a cumprir com este princípio no treino de Futebol, deverão ser garantidos estímulos frequentes que, dentro das diferentes dimensões do rendimento, se aproximam do “jogar” idealizado – uma vez que é este o “referencial específico” que se pretende alcançar.

Um ciclo de treino deverá então assumir a seguinte estrutura…

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Figura 1. Ciclo de Treino.

Apesar da necessidade de especificidade ser consensual entre treinadores de Futebol, este princípio é muitas vezes abordado de forma simplista, sendo frequente a sua referência na classificação de exercícios como “bons” ou “maus”. Este princípio também fundamenta a recusa de exercícios fora do campo. No entanto, estas avaliações parecem-me incompletas uma vez que não reconhecem níveis intermédios de especificidade

Em jeito de preâmbulo para a secção seguinte, imagine-se uma situação hipotética:

  • Sendo necessário escolher apenas uma das opções “não-específicas”, qual poderá preparar melhor um atleta para a competição em Futebol?
    • Treino de basquetebol em contexto coletivo (5×5);
    • Treino de futebol de forma individual (1×0).

Quais os critérios que justificam a escolha tomada?


De forma a sustentar uma resposta criei a figura que se segue – baseada no conceito de representative learning design [LINK] e respetivos construtos (action fidelity e functionality) – na qual enquadrei componentes da especificidade, dentro das dimensões de rendimento existentes. 

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Figura 2. Componentes do Princípio da Especificidade.

Comparando então a especificidade das opções anteriores (basquetebol em contexto coletivo vs treino de futebol individual), recorrendo a apenas alguns dessas componentes…

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Figura 3. Comparação de Especificidade – Futebol vs Basquetebol.

Observando a comparação, é possível entender que o treino individualizado de Futebol permitirá maior especificidade de gestos técnicos, não sendo possível afirmar o mesmo sobre as fontes de informação que o indivíduo terá de “processar”… Tratando-se de treino individualizado, as fontes serão simuladas (cones, luzes, etc.) quebrando desta forma o acoplamento entre perceção e ação característico do jogo formal. O treino de Basquetebol, apesar não garantir especificidade na dimensão técnica aproximar-se-á do pretendido nas fontes de informação, por se tratar de um desporto coletivo de invasão. Ainda assim, algumas dessas fontes poderão não ser funcionais (o cesto por exemplo), por se afastarem das relevantes para a prática de Futebol. Portanto, uma das opções expõe o atleta a um conjunto de componentes que a outra não expõe, e vice-versa… Ambas as opções situam-se em níveis intermédios de especificidade, sendo a escolha tomada uma questão de prioridade acerca o que deverá ser trabalhado no indivíduo.

Comparações semelhantes poderão ser feitas dentro de um treino “comum” de Futebol. Imagine-se um exercício no qual todos os jogadores finalizam sem oposição e próximo do guarda-redes… As características dessa execução técnica poderão ser específicas para avançados, não o sendo – ou pelo menos sendo menos – para os defesas-centrais. Para estes, as características serão desadequadas, pelo facto dos remates surgirem em jogo a uma distância superior e com enquadramentos diferentes. Sendo a especificidade um tópico frequente na discussão de Futebol, seria expectável que estas modificações estivessem mais presentes na escolha de exercícios.

Através de figura 2 também será percetível o porquê do Futsal ser uma modalidade introdutória aconselhável para o Futebol…


O único contexto verdadeiramente específico é o jogo formal… Todos os restantes estarão enquadrados algures no espectro da especificidade. A utilização das figuras anteriores (2 e 3) permite clarificar quais as diferenças entre exercícios, auxiliando também num planeamento de treino mais representativo. Quantas mais componentes de especificidade existirem num exercício maior o transfer do treino para o jogo e, por inerência, maior a probabilidade de se alcançar o “jogar” idealizado.

O possível trade-off entre o princípio da sobrecarga e o da especificidade deverá ainda assim ser considerado [LINK], uma vez que a progressão ou regressão de tarefas modificará componentes que consequentemente tornarão a tarefa menos específica… A mestria do treinador estará na capacidade de progredir ou regredir os exercícios, entendendo quais as componentes passíveis de se “sacrificar” no planeamento, mantendo o máximo destas presentes.