Treinar jogando? A estabilidade e variabilidade dos sistemas

Recordo-me de ouvir, há já alguns anos, que existe a tendência excessiva de “treinar as equipas no equilíbrio”. Apesar de me lembrar várias vezes desse aforismo, tenho-lhe descoberto outros âmbitos de aplicação, estando convencido que a tendência referida ainda prevalece. Mais recentemente, revisitei as características de diferentes sistemas – simples, complicados, complexos e caóticos. De modo diluído, os sistemas simples e complicados apresentam relações de causalidade previsíveis, diferindo no número de elementos que os constituem. Os sistemas caóticos caracterizam-se por comportamentos aleatórios, gerados através de interações intrincadas. Já nos sistemas complexos, nos quais se poderá enquadrar o Futebol, o número de elementos é tendencialmente elevado, estabelecendo-se redes complexas de interdependência. Em adição, a ausência de um controlo centralizado, que coordene as ações dos diversos elementos, origina relações de causa-efeito não-lineares (o mesmo input poderá resultar em diferentes outputs), tornando-se impossível prever o seguimento de cada ação (uma ação “errada” no imediato poderá resultar num outcome positivo posterior e vice-versa).


O modelo de Cynefin apresenta algumas recomendações sobre como atuar nos diferentes sistemas [LINK].


Apesar da variabilidade existente nos sistemas complexos, a interação entre elementos gera também padrões comportamentais (estabilidade). No Futebol esses padrões podem ser observados em comportamentos coletivos recorrentes, que se alicerçam numa intenção grupal prévia. Ambos os construtos – variabilidade e estabilidade – são, portanto, inerentes à prática formal da modalidade. No entanto, por um apego mecanicista, a tendência será a de reduzir a variabilidade dos contextos de treino. O já mencionado “treinar no equilíbrio” [LINK]… Ao invés dessa abordagem recorrente, julgo que uma manipulação dos construtos que respeite as fases de aprendizagem dos comportamentos, será uma alternativa mais adequada:

  1. Numa fase inicial, a variabilidade nos exercícios deverá ser reduzida, objetivando a criação de uma ideia grupal e a estabilização primária de comportamentos em diferentes níveis (intra ou inter-setores, por exemplo);
  2. Numa fase intermédia, os contextos deverão apresentar maior variabilidade, com o propósito de reforçar a “atração” pelas ações preferenciais, na presença de opções alternativas;
  3. Numa fase mais avançada, a variabilidade dos cenários será maximizada, estabilizando-se ações e intenções, em cenários ricos em informação e possibilidades.

Estas fases foram abordadas com maior detalhe num artigo prévio [LINK].


Na terceira e última fase, o aumento da variabilidade desempenha um papel essencial. Até recentemente, considerava que a exposição a uma maior variabilidade deveria ser alcançada através do incremento do número de exercícios utilizados para um objetivo. No entanto, a modificação intra-exercício, onde em cada recomeço se alteram variáveis como a posição inicial dos jogadores ou da bola, parece-me cada vez mais uma alternativa apropriada. A modificação das condições iniciais levará à execução dos comportamentos pretendidos em contextos de variabilidade aumentada, aproximando assim as tarefas do jogo formal. Apenas o referido “apego mecanicista” sugere que diferentes repetições de um exercício devem iniciar-se da mesma forma... Apresentando alguns exemplos de modificações num exercício simples onde se aborda a etapa de construção. Nesta tarefa, a equipa que inicia em posse deverá alcançar uma de três zonas, situadas próximo do meio-campo.

Vejam-se outras possibilidades, num exercício relativo ao método de contra-ataque.

Nos exemplos anteriores as modificações são introduzidas no recomeço do exercício. No entanto, essas variações podem também ser adotadas durante a execução do mesmo – introdução de uma nova bola de jogo, alteração do número de jogadores, etc.


A necessidade de evitar o “treino no equilíbrio” poderá ser satisfeita mediante um maior número de tarefas para determinado objetivo, bem como por via das modificações intra-exercício discutidas. Ainda assim, esta questão deve ser previamente enquadrada num processo didático mais amplo, de exigência adequada e gradativa [LINK]. Compete ao treinador, como modelador dos contextos de aprendizagem, gerir a variabilidade e estabilidade aí existentes, de forma a cumprir estes pressupostos de progressividade.


Referências Bibliográficas

Araújo, D., & Davids, K. (2016). Team Synergies in Sport: Theory and Measures. Frontiers in psychology, 7, 1449. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2016.01449

Rickles, D., Hawe, P., & Shiell, A. (2007). A simple guide to chaos and complexity. Journal of epidemiology and community health, 61(11), 933–937. https://doi.org/10.1136/jech.2006.054254


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